A última das moecanas – Jornal Contato

Sítio Santo Antônio é onde se abriga o alambique que produz a cachaça Maria Izabel, que em apenas duas décadas desbancou, com sua cachaça artesanal, marcas famosas que transformaram Paraty em um dos maiores produtores de cachaça do Brasil. Na rodovia Rio Santos, rebatizada de Governador Mario Covas, na altura do Km 563, não há qualquer indicação.

Quem não conhece a região dificilmente encontrará a entrada para uma estradinha de terra que o conduzirá para um sítio à beira do mar pouco mais de mil e quinhentos metros adiante. Em frente, avista-se a Ilha do Araújo com sua capelinha bem branca, ao lado de um barzinho que serve um dos melhores pastéis com camarão, separados do sítio por cerca de dois quilômetros de mar. Liz Calder, a poderosa editora inglesa (Harry Potter entre outros) idealizadora da FLIP – Festa Literária Internacional de Paraty – foi sua vizinha, até recentemente.

História e tradição

Maria Izabel, hoje é alambiqueira respeitada e proprietária de uma cachaça artesanal conhecida em todo o Brasil graças à revista Playboy de abril desse ano que a colocou em 11º lugar entre as 20 melhores marcas testadas por especialistas convidados para essa duríssima empreitada. Mas sua história de vida tem um sabor que concorre com seu produto.
Essa mulher com mais de 50 anos, mãe de seis filhas – Izabel, Maria, Mabel, Marisa, Maíra e Maia – e avó de cinco netos – Helena, Kim, Isabel, Felipe e Rosa -, tem uma história que se confunde com a da cidade. Seu avô, Samuel Costa, é a figura que empresta seu nome a todos os lugares mais importantes de Paraty.

Formado em direito de 1906, no Rio de Janeiro, pela faculdade mais famosa do Brasil da época, Costa era um paratiense de quatro costados. Sua família conheceu e viveu a glória e a decadência da cidade. Ouro, tráfico de escravos e produção de cachaça marcaram um longo período daquele pólo acessível apenas por mar. A estrada de terra que liga Cunha a Paraty era uma rota de tropeiros que traziam ouro de Minas Gerais. O fim da escravidão e o esgotamento das minas de ouro contribuíram para um longo período de isolamento e decadência só rompido com a construção da rodovia Rio-Santos concluída em meados dos anos 1970.

Samuel Costa nasceu em Paraty em 18 de novembro de 1882. Sua família de fazendeiros foi proprietária da antiga fazenda Bananal, hoje Murycana. Formou-se advogado no Rio de Janeiro em 1906, envolveu-se na política paratiense, derrotou a hegemonia oligárquica da época e implantou uma maneira mais ética de fazer política. Chegou a ser Deputado Provincial de Paraty, presidente da Câmara várias vezes, quando ainda não existia eleição para prefeito, e o primeiro prefeito eleito da cidade.

A carreira brilhante foi interrompida abruptamente pela hanseníase que, depois de oito longos anos de sofrimento atroz, ceifaria sua vida em 1931. Alguns anos antes sua esposa morrera tuberculosa. Seus três filhos – Paulo (pai de Maria Izabel), Maria Luiza e Heitor -, órfãos de pai e mãe, passaram por muitas dificuldades. Apesar das extensas propriedades, eles não dispunham de recursos para o dia-a-dia. Numa carta emocionante escrita por Heitor quando estudante ginasial em São Paulo, ele relata como os padres jesuítas mudaram o tratamento em relação a ele depois da morte de seu pai.

Maria Izabel não curtiu a bonança do tempo de seu avô. Casou-se com Carlos, arquiteto argentino, que lhe propiciou cinco lindas filhas. Quando a mais nova era ainda criança, Maria Izabel vendeu a propriedade que herdara do pai para adquirir o sítio Santo Antônio, ao lado da praia do Rosa, em frente a Ilha do Araújo. Estava decidida a aprender como produzir cachaça. Isso em meados dos anos 1980.

A rainha da cachaça ou a última da moecanas

A última das moecanas é um trocadilho de moicana, da tribo indígena norte-americana, com moedora de cana para o fabrico de cachaça. Maria Izabel Costa ri quando se refere a si mesma, na empreitada que em pouco mais de vinte anos levou sua cachaça para o 11º lugar entre as melhores cachaças do Brasil, segundo a revista Playboy de abril desse ano.

Ela conta que no começo vivia da venda de banana, coco, limão e outros produtos do sítio Santo Antônio. A falta de estrada até a propriedade a obrigava a transportar tudo com uma baleeira que ela mesma pilotava. Com a venda da casa perto da Ponte Branca, a beira da estrada Cunha-Paraty, Maria Izabel comprou o equipamento necessário para montar um alambique. Energia elétrica? Nem pensar. Só chegaria em 2005. Cana também não havia no sítio. As primeiras mudas foram trazidas do Corumbê. “A primeira cana moída foi plantada por mim”, conta orgulhosa a hoje alambiqueira mais famosa do Brasil.

Mas ela era neófita na arte de produzir cachaça. “Fui visitar os alambiqueiros de Paraty. Aprendi muito com Pedro Peroca, da fazenda do Fundão, que fazia a Cachaça do Peroca, a melhor de Paraty. Outro foi o Ormindo, que fazia a Coqueiro, cuja patente ele vendeu para o Eduardinho, hoje seu proprietário”. Maria Izabel conta que Ormindo arrumava os alambiques de todo o mundo na região, e que construiu o dele com peças recuperadas.

Todos os alambiques foram visitados pela futura Rainha da Cachaça. “Devo ter cachaça no meu DNA porque meus antepassados produziam na Fazenda Bananal, hoje transformada em Fazenda Murycana, que era de Francisco (Chico) Lopes Costa, meu bisavô, que, segundo a lenda, seria o introdutor da maçonaria em Paraty”, conta Maria Izabel. Aliás, quase todos os prédios antigos do centro histórico de Paraty trazem símbolos maçônicos nas paredes.

E continua: “Eu era bem recebida pelos alambiqueiros porque meu avô era muito querido. Foi deputado provincial, presidente da Câmara quando não havia prefeito, e foi o primeiro eleito de Paraty”. Mas o que fez esse político para ser tão querido. Maria Izabel enche o peito para contar apenas um dos muitos exemplos.

“O cemitério da cidade, desde que saiu da praça da matriz, ele foi para o morro no caminho do Forte. Ainda não existia a ponte que leva ao Pontal. Os mortos eram levados de barco para o outro lado. Num desses enterros, o barco virou e morreram mais duas pessoas. Foi uma tragédia. Meu avô foi ao Rio de Janeiro solicitar recursos para a construção da ponte. Recebeu apenas a promessa que seria ressarcido pelo que gastasse na construção. Meu avô conversou com todos os empresários da cidade, conseguiu madeira e construiu uma ponte linda de madeira. Pouco depois, vieram algumas autoridades do Rio que aprovaram a obra.

Liberaram muito mais recursos do que havia sido gasto. Samuel Costa pegou o que sobrou e foi para São Paulo onde comprou turbinas que trouxeram luz elétrica para a cidade. Por isso ele é um símbolo de integridade quando se trata de recursos públicos”.

Histórias como essa é que não faltam. São lembranças vivas que permitiram Maria Izabel visitar todos os alambiqueiros que a receberam de braços abertos. Só depois desse périplo ela começou a produzir. Mas as duas primeiras cachaças não foram destiladas por ela. Mas a terceira foi realizada integralmente por ela que recorda “a sensação muito grande ao ver o produto do seu esforço”. E até hoje não corta uma árvore sequer para usar como lenha. “Só uso madeira descartada”, afirma a Rainha da Cachaça, uma ambientalista que batalha em silêncio.

Alguma filosofia por trás de tudo isso? Com a simplicidade de caiçara, ela responde que “durante a travessia eu não penso no porto [de chegada]. Eu desfruto a viagem”, sem sapatos, que ela nunca usa, mesmo andando pelas ruas de pedra de Paraty.

Segredos
Maria Izabel não bebe e não é conhecedora de cachaça como muita gente imagina. Então, como é que ela sabe se a cachaça produzida é bom mesmo e tem qualidade? “É o acompanhamento rigoroso de todo o processo.”

E qual é o segredo desse processo? Sem qualquer mistério, ela revela quais são os três segredos que garantem o sucesso de uma das melhores cachaças do Brasil. O primeiro é a cana. “Minha produção é pequena e é moída imediatamente após ser colhida. Isso facilita a fermentação. O segundo é o fermento na base do milho, uma receita dos antigos produtores de cachaça de Paraty. A minha foi dada pelo Pedro Peroca. Se a cana não for moída na hora, ela começa a fermentar por uma bactéria que a deixa mais ácida”. Peroca ainda produz? “Não. Faleceu em 2006, abandonado em um asilo”.

E o terceiro segredo? “É a destilação. Ela tem de ser feita com a maior higiene possível para evitar o cobre na cachaça. Meu alambique é de cobre e uso o fogo direto que é diferente do alambique de caldeira. Da cachaça alambicada, só aproveito o coração (meio). Dispenso a cabeça (começo) e o rabo (fim)”.

Terminada a conversa, Maria Izabel fez questão de oferecer uma degustação de suas cachaças. Comecei pela mais nova. Branquinha, forte, mas sem acidez. Terminei com a especial, ligeiramente amarelada pela madeira do tonel de carvalho, que desce macio e é vendida, ali na fonte, pelo valor aproximado de um whisky 8 anos, tipo Red Labe.

E se o pessoal de Taubaté quiser conhecer todas essas delicias? “Basta me ligar (24) 9999-9908 e agendar. Terei o maior prazer em recebê-los. A falta de indicação na estrada é para evitar visitas inoportunas. Tenho certeza que o pessoal do Vale do Paraíba vai curtir tudo isso”. Eu também!

Texto: Paulo de Tarso Venceslau