Maria Izabel está na boca do povo. Quem vai a Paraty, no estado do Rio de Janeiro, fatalmente ouve falar dela nos bares e restaurantes da cidade. A cachaça com nome de mulher figura entre as mais caras da carta de bebidas. Se o assunto é caipirinha, os garçons se apressam em anunciar: “A nossa é feita com Maria Izabel!”.

Nos armazéns do Centro Histórico, a garrafa de rótulo estilizado, com design feminino, bate o preço do uísque. O que poucos visitantes sabem é que a Maria Izabel do rótulo existe. É Maria Izabel Gibrail Costa, paratiense de 62 anos, quem produz, sozinha, a cachaça que leva seu nome. De jeans com a barra enrolada, camisa e trança longa nos cabelos, ela entrega pessoalmente os garrafões nos estabelecimentos da cidade. Detalhe: sempre descalça. “Não sou pé-frio!”, diz Maria Izabel, justificando o costume de andar sem sapatos, quer chova ou faça sol. Ainda menina, conta, atirou os calçados longe e só se rende à convenção quando viaja. “Mas viajo pouco”, adianta.

O cenário da conversa é o sítio Santo Antônio, propriedade à beira-mar, a 5 quilômetros da cidade, onde ela mora e mantém seu alambique. Maria Izabel tem um ar sereno. Como sua cachaça, parece amadurecer com graça. Por acaso é o dia de seu aniversário, fato que ela omitiu à repórter, um tanto deslocada por estar ali interrogando a aniversariante entre família e amigos. “Para mim é um dia normal”, garante ela.

Concentrada, conta que nasceu numa fazenda ouvindo causos de antepassados como seu avô, Samuel Costa, o prefeito que trouxe a luz elétrica para Paraty. Sabe como? “Ele viu passar um cortejo fúnebre de canoas. Ainda não havia a ponte sobre o rio Perequê, que liga o Centro Histórico e o bairro do cemitério. Uma canoa afundou. Em vez de um, enterraram dois”, conta. O prefeito, comovido, construiu uma ponte com recursos próprios e madeira de demolição. Com o reembolso do Estado pela obra, ele investiu na luz. “Paraty foi o segundo município do Rio a ter energia elétrica”, diz Maria Izabel.

Um barco se aproxima do sítio. Sob protestos dos convidados do aniversário, Maria Izabel resolve receber um grupo de São Paulo que veio ver o alambique. Bom momento para saber mais sobre a famosa aguardente. Sentada num banquinho, entre os barris onde armazena sua bebida por no mínimo um ano – “a cachaça precisa respirar”, diz –, ela promove uma degustação didática e bem-humorada. Ela serve a primeira dose (meio dedinho) da cachaça azulada, que ganha essa coloração por ser destilada em um “travesseiro” de folhas de mexerica. “Essa fica boa no congelador”, recomenda. A branca, guardada em barris de jequitibá, é a melhor para caipirinhas porque o sabor não briga com o da fruta. Já a envelhecida em carvalho, de tom amarelo-ouro, é para ser apreciada pura.

LABAREDA

Embora registros mostrem que seu trisavô, Francisco Lopes da Costa, produzia cachaça em 1800, Maria Izabel conta que aprendeu tudo na raça.

No princípio, ia de bar em bar, nas ilhas e na beira da estrada, tentando vender seu produto. “No começo, ralei!”, diz. A pergunta no ar era: que cachaça é essa feita por uma mulher? Por ser menos ácida (sinal de qualidade), havia quem duvidasse do teor alcoólico de 44% da tal pinga. Ela chegou a desafiar um dono de bar a atear fogo numa dose. “Subiu uma labareda!”, diverte-se. Mas também contou com o apoio de amigos influentes, como a editora inglesa Liz Calder, idealizadora da Flip – a Festa Literária Internacional que colocou Paraty no mapa cult. Vizinha do sítio, foi ela quem deu de presente à amiga o rótulo criado pelo designer australiano Jeff Fisher. Na Flip, os escritores convidados ganham uma garrafa. Conta-se que em 2004 o nova-iorquino Paul Auster declarou: “Ontem eu e Chico Buarque passamos a noite abraçados com a Maria Izabel” [risos].

“Sua cachaça é das melhores da região”, atesta o cachacier Mauricio Maia, de São Paulo. “A destilação é feita cuidadosamente por ela, que tem muito conhecimento do que faz. Uma erudição que às vezes fica oculta por sua simplicidade”, diz o especialista. Entre os sete alambiques em atividade em Paraty, Maria Izabel é a menor produtora – são cerca de 7.500 litros por ano, extraídos da cana plantada em três hectares do seu terreno. Nada mal para quem começou há 16 anos, com uma “destiladinha” de 200 litros. Mas não pensa em crescer mais. “Faço uma cachaça do meu tamanho”, diz.

É Maria Izabel, com a ajuda de três funcionários, quem cuida de todas as etapas – da plantação da cana à colagem dos rótulos nas garrafas.

Quando um dos visitantes pergunta se alguém já falsificou sua cachaça, lá vem história: desconfiada de um restaurante que oferecia Maria Izabel, mas há tempos não comprava a bebida, a produtora deu uma incerta no lugar e comprovou a farsa. Saiu de mesa em mesa dizendo aos clientes que ela era a Maria Izabel e aquela não era sua cachaça, diante de garçons estupefatos.

Quem vê Maria Izabel tão dona de si e de sua cachaça não imagina que isso tudo é relativamente recente. Aos 17 anos, ela se casou com o arquiteto argentino Carlos Cermelli. O forasteiro viu Maria Izabel em um documentário sobre Paraty, montando a cavalo, e se encantou pela Anita Garibaldi fluminense.

Das seis filhas – Izabel, Maria, Mabel, Mariza, Maira e Maia –, cinco são dele. Engana-se, contudo, quem pensa que os nomes são em própria homenagem. Até a quarta filha, o marido escolheu e registrou as meninas sozinho. Mas quando ouviu falar no nome Maribel, a mãe se rebelou. Sozinha, registrou Maira.

A essa altura, ela estava perto de se separar do pai das meninas pela segunda vez. Na primeira, quando ele surtou de paixão por outra moça, ela se viu só, com quatro filhas. Deprimida, montou uma lojinha de plantas na porta de casa. Alguém perguntou: “Você faz jardim?”. “Faço”, respondeu, no automático. Sem saber desenhar o projeto, folheou uma revista e deu com uns croquis de Burle Marx. Em pouco tempo assinava o paisagismo de casas chiques. “Era uma época em que tudo dava certo!”, lembra. Tempo em que começou também a fazer ioga, a partir das figuras de um livro, e teve uma experiência mística.

Meditando, saí do corpo. De repente, eu era a árvore, o rio, a areia, era parte de tudo. Me vi renascendo muitas vezes. Tive a sensação nítida de que dores e alegrias são passageiras, que a vida é um ciclo de continuidade. Isso me ajuda nos momentos difíceis”, diz.

Refeita, ainda aceitou o marido arrependido e deu à luz Maira. Mas não durou. Nos anos seguintes, vendeu pão integral e fez passeios turísticos com uma baleeira. Até comprar o sítio, quando ali não havia luz. A atriz Nanda Costa, neta de uma das irmãs de Maria Izabel, se recorda dessa fase. “Só chegávamos ao sítio de barco ou por uma trilha de 30 minutos. Era uma aventura! Quando íamos no escuro, então, era cheio de vaga-lumes, e ela ia contando histórias. Sempre admirei sua força”, lembra Nanda.

Naqueles dias de mar e sol no rosto, Maria Izabel conheceu o segundo marido, o francês Alan, velejador e negociante de pedras preciosas. Com ele, teve Maia, a caçula de 18 anos, que nasceu com síndrome de Down. “Maia é minha mola propulsora”, diz ela. É um zigue-zague diário para levar a filha à fonoaudióloga e a sessões de RPG.

Quando pequena, Maia foi vítima de um acidente terrível: teve parte de uma perna cortada pela hélice de um barco (assunto intocável para Maria Izabel), felizmente recuperada por uma prótese. A amiga Lurdinha, testemunha da tragédia, lembra: “Naquele dia, o tempo mudou, a atmosfera ficou triste, a cidade toda sentiu”, diz ela, dona de uma loja de decoração em Paraty. “Hoje, Maia é a sua maior companheira”, comenta.

CASA DAS SETE MULHERES
A filha número quatro, Mariza, 35 anos, que, junto com a mais velha, Izabel (Belita), trabalha na organização da Flip, é só elogios à supermãe: “Ela nos deu liberdade e ao mesmo tempo foi superpresente. Nos ensinou o respeito ao próximo e uma forte ligação com a natureza. Por isso somos todas meio malucas, mas bem resolvidas. Quer dizer, somos bem resolvidas?”, pergunta à mãe. Maria Izabel devolve: “As seis são as melhores amigas umas das outras, acho que isso é um bom sinal. Sinto que acertei”.

Sem grandes vaidades, Maria Izabel conserva os longos cabelos mesclados de branco e a grossa sobrancelha impecável. Separada, dispensa casar de novo. Avó de oito netos, a dona da casa das sete mulheres vive apenas com a caçula e diz não conhecer solidão. Seu prazer é acordar antes de o sol nascer e tomar um chimarrão em silêncio, com vista para o mar. “Entro num estado meio mágico. Aqui, faço parte da paisagem”, diz ela, emoldurada pela baía de Paraty, a caminho do merecido “Parabéns a você”.

fonte: https://www.paodeacucarmais.com.br/Secure/PilarAlimentacao.aspx
Texto por Rosane Queiroz